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A Lei de Liberdade Econômica e a Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Empresária de Responsabilidade Limitada

A Lei de Liberdade Econômica e a Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Empresária de Responsabilidade Limitada

A Sociedade empresária de responsabilidade limitada é um instrumento de extrema relevância social, plenamente compatível com a ordem econômica desenhada pela Constituição Federal/88, na medida em que constitui um mecanismo de motivação para mobilização da iniciativa privada no sentido de empreender para garantir o atendimento das necessidades exigidas por todo o corpo social.

De fato, a limitação da responsabilidade dos sócios, na sociedade limitada, traz o necessário estímulo à exploração da atividade econômica, pois poucos se aventurariam a organizar novas empresas se o insucesso de suas iniciativas pudesse resultar na perda de todos os seus bens, conquistados ao longo de anos de trabalho, ou mesmo, de gerações.

Segundo Fábio Ulhoa Coelho, temos que:

“A limitação da responsabilidade do empreendedor ao montante investido na empresa é condição jurídica indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade da produção e circulação de bens ou serviços. Sem essa proteção patrimonial, os empreendedores canalizariam seus esforços e capitais a empreendimentos já consolidados”.[1]

Essa limitação de responsabilidade produz um efeito econômico não negligenciável, qual seja, o de transferir para terceiros uma parte do risco inerente à atividade empresarial,[2] visando o desenvolvimento de atividades econômicas produtivas e, consequentemente, um aumento na arrecadação de impostos e na geração de empregos.

Evidente, portanto, que a limitação da responsabilidade se trata de verdadeiro fator de estímulo ao empreendedor, garantindo-lhe maior segurança para o desenvolvimento da sua atividade, que beneficiará não somente a ele, mas a todo o meio social.

Não se ignora que essa autonomia patrimonial pode ser desvirtuada e utilizada para fins ilegais, o que justifica que o ordenamento jurídico preveja hipóteses que afastem tal condição, com a desconsideração da personalidade jurídica e consequentemente atingimento do patrimônio dos sócios.

Entretanto, a desconsideração da personalidade jurídica deve se dar de forma excepcional, tão-somente quando verificados determinados requisitos, eis que constitui verdadeiro método de responsabilização patrimonial da pessoa física, por débitos da pessoa jurídica, ou vice-versa (no caso de desconsideração inversa da personalidade jurídica).

De fato, as constantes tentativas de desprestigiar a autonomia patrimonial dos entes personificados de responsabilidade limitada, representam um risco real para o desenvolvimento econômico sustentável, porque desestimulam os investimentos e afastam os recursos privados, contribuindo para a própria ineficiência do Poder Público, incapaz de atender a todas as demandas sociais sem a contribuição da iniciativa privada.

Diante de tais distorções, em sintonia com o posicionamento jurisprudencial acerca do tema, foi promulgada a Lei nº 13.874/19, de 20 de setembro de 2019 (Conversão da Medida Provisória nº 881, de 2019), comumente conhecida como “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, trazendo alterações a importantes dispositivos do Código Civil de 2002, como por exemplo o art. 50, demonstrando a preocupação do legislador em fornecer maior segurança jurídica às partes envolvidas e ao Juiz que irá julgar os pedidos que lhe forem submetidos.

Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Destacamos)

Desta forma, do art. 50 do CC/02, é possível extrair que, para que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica seja deferido, é necessário demonstrar a ocorrência de (i) abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo (ii) desvio de finalidade ou (ii) pela confusão patrimonial.

O §1º do artigo 50, nos traz a definição do que é o “desvio de finalidade”, em consonância com a jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça, eis que se trata de um conceito com ampla interpretação, a fim de enfatizar que este ocorrerá apenas diante de ato dolosamente praticado, ou seja, praticado com intuito de fraude, e/ou má-fé a credores, e fraude a terceiros.

Já o §2º do art. 50, esclarece quais são as hipóteses que configuram “confusão patrimonial”, definida como “a ausência de separação de fato entre os patrimônios”.

Nos termos do inciso I, caracterizará confusão patrimonial quando houver o cumprimento repetitivo de pagamento de obrigações da pessoa física do sócio pela pessoa jurídica, ou vice-versa. Porém, é necessário analisar o caso concreto, uma vez que para configurar confusão patrimonial, a personalidade jurídica deve ser utilizada pelo controlador, reiteradamente, como um instrumento para movimentação de seus recursos pessoais.

O inciso II, caracteriza a confusão patrimonial pela “transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante”. Aqui, o propósito é não haver mistura entre os patrimônios, pois a criação da personalidade jurídica é exatamente para que exista esta incomunicabilidade. Desta forma, se a própria empresa pratica atos que contrariam a finalidade do instituto, a desconsideração da personalidade jurídica pela confusão patrimonial se impõe.

Por último, temos que o inciso III representa uma cláusula geral, a ser aplicada pelo juiz diante de outras hipóteses que configurem confusão patrimonial, mas que não estejam previstas nos incisos I e II.

Todavia, da mesma forma que existe a possibilidade de o controlador utilizar-se da personalidade jurídica para fins ilícitos, o inverso também é possível, ou seja, o credor também pode utilizar-se do pedido de desconsideração da personalidade jurídica para atingir o patrimônio da pessoa física, uma vez que, por exemplo, frustradas as suas tentativas de localização de bens em nome da pessoa jurídica, existindo um verdadeiro desvirtuamento do instituto, por tornar a exceção, uma regra.

Diante da problemática, a jurisprudência passou a enfrentar diversos pedidos de credores para a desconsideração da personalidade jurídica, pelos mais diversos motivos, sem, contudo, nenhuma demonstração de abuso de personalidade jurídica por desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Podemos chamar estas iniciativas de persecução pelo adimplemento a qualquer custo, desrespeitando questões de caráter economicamente relevantes para a sociedade, eis que, como vimos, a criação da pessoa jurídica permite o desenvolvimento da atividade econômica. Vejamos alguns exemplos:

 

Agravo de Instrumento. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Indeferimento. Alegação de encerramento irregular e falta de bens em nome da empresa que não autoriza, por si só, a concessão do pedido. Provas dos autos insuficientes ao reconhecimento de abuso da personalidade jurídica, demonstração de confusão patrimonial/fraude. Recurso improvido”. (TJSP; Agravo de Instrumento 2194463-15.2017.8.26.0000; Relator: Jairo Oliveira Júnior; 15ª Câmara de Direito Privado; Mogi das Cruzes – 2ª Vara da Família e das Sucessões; Data do Julgamento: 22/11/2018; Data de Registro: 22/11/2018). Grifamos

 

Agravo de Instrumento. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Recurso contra decisão que indeferiu a instauração do incidente diante da ausência de requisitos. Desconsideração da personalidade jurídica. Ausente comprovação de confusão patrimonial ou desvio de finalidade, hipóteses do artigo 50 do Código Civil. O encerramento irregular e ausência de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica. Precedentes do STJ. Recurso desprovido”. (TJSP; Agravo de Instrumento 2145771-48.2018.8.26.0000; Relator: Elói Estevão Troly; 15ª Câmara de Direito Privado; 16ª Vara Cível Central; J. 21/08/2012; Registro: 10/08/2018). Grifamos

 

Execução de Título Extrajudicial. Decisão que deferiu a desconsideração da personalidade jurídica. Não verificados os requisitos previstos no art. 50 do CPC. Não demonstrado o abuso da personalidade jurídica. Ausência de bens e inatividade são insuficientes para justificar a manutenção da decisão recorrida. Precedentes. Recurso provido”. (TJSP; Agravo de Instrumento 2197823-89.2016.8.26.0000; relator: coelho mendes; órgão julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional IV – Lapa – 2ª Vara Cível; data do julgamento: 21/02/2017; data de registro: 22/02/2017).  grifamos

 

Agravo Interno no Recurso Especial. Processual civil (CPC/2015). Desconsideração da personalidade jurídica. Artigo 50 do Código Civil. Abuso da personalidade jurídica. Desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Requisitos. Não preenchimento. Encerramento irregular da sociedade. Insolvência da pessoa jurídica. Descabimento. Ausência de fundamentos que justifiquem a alteração da decisão agravada” (AGINT no RESP 1636680/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª turma, j. 07/11/2017, dje 13/11/2017).

 

Portanto, a limitação de responsabilidade é um instrumento fundamental para o desenvolvimento de algumas atividades empresariais.

A separação patrimonial permite que somente o patrimônio da sociedade personificada responda pelas dívidas da sociedade e, salvo casos de confusão patrimonial, é esse mesmo patrimônio o único que responderá por todas as operações de uma empresa.

Esse reconhecimento pela sociedade e pelo Estado se justifica, pois existem fatores externos que não podem ser controlados pelo sócio. Os fatores da política e da economia, por exemplo, podem ser facilmente alterados pelo Estado de forma a afetar diretamente as empresas.

Por outro lado, a validade dessa ficção jurídica, a Personalidade Jurídica, está condicionada ao seu uso lícito, com a finalidade de fomentar a atividade econômica a que se propôs.

As constantes tentativas de desprestigiar esse sistema representam um risco real para o desenvolvimento econômico sustentável, porque a impossibilidade de isolar o risco a um certo montante desestimula os investimentos e afasta os recursos privados contribuindo para a própria ineficiência do Poder Público que não consegue atender a todas as demandas sociais sem a iniciativa privada em conjunto.

 

[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Direito de empresa. Curso de direito comercial. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. vol. 2, P. 402

[2] 9 DOMINGUES, Paulo de Tarso. Do capital social: noção, princípios e funções. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2004. p. 218-219.

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